IMÓVEL - DEMORA NA REGULARIZAÇÃO DA TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE - DANOS MORAIS CARACTERIZADO

VISTOS. Na petição inicial, o autor afirmou que havia ajustado com a ré um compromisso de venda e compra de um apartamento, quitando-o em 03.10.2008. Porém, em 22.2.2009, o autor negociou o apartamento para R. D. J. D. S. e G. R. C. e necessitava regularizar a transferência da propriedade, no 16º Cartório de Registro de Imóveis. Ocorreram os seguintes fatos: a) solicitação em 12.3.2009 de cópia autenticada do contrato social da empresa ré, b) exigência do Cartório de Registro de Imóveis em 18.3.2009 de um Termo de Quitação específico que autorizasse a baixa da alienação fiduciária do imóvel e c) a ré somente entregou a documentação para o autor em 06.5.2009. Após mencionar o descaso da ré no fornecimento da documentação necessária à regularização da transferência da propriedade, o autor deduziu pedido de indenização dos danos morais no valor de R$ 50.000,00. Na contestação (fls. 58/72), em síntese, a ré confirmou a contratação entre as partes, mas impugnou a pretensão inicial sob o argumento de que havia cumprido suas obrigações contratuais. A ré negou a prática de atos danosos ao autor. Não havia obrigação de fornecer cópia de seu contrato social. E atendeu prontamente aos pedidos do autor. No mais, combateu a existência de danos morais. Houve réplica. É O BREVE RELATO. FUNDAMENTO E DECIDO. O processo comporta imediato julgamento, dispensando-se a produção de outras provas, nos termos do artigo 330, inciso I do Código de Processo Civil. A ação é procedente. A documentação trazida para os autos traduz prova dos seguintes fatos: A) em 03.10.2008, o autor quitou o preço da compra e venda do imóvel com alienação fiduciária (fls. 26). B) em 27.1.2009, o autor enviou e-mail para a ré solicitando cópia autenticada do contrato social para que se comprovasse que o senhor Rodrigo Uchoa Luma tinha poderes para assinar (fls. 32). O e-mail foi encaminhado para a área técnica, conforme resposta do mesmo dia (fls. 33). C) em 26.2.2009, o autor prometeu vender o referido imóvel a terceiros (fls. 10/15). D) em 12.3.2009, o autor voltou a comunicar-se com a ré, desta feita informando que o primeiro termo de quitação havia sido considerado insuficiente pelo 16º Cartório de Registro de Imóveis, que exigia a referência expressa à liberação da alienação fiduciária (fls. 42/43). O pedido foi reiterado em 30.3.2009 (fls. 36), apesar da orientação da ré de que bastava a menção de cláusula do contrato de que a quitação do plano abrangia a alienação fiduciária (fls. 36/37). Entendo caracterizado o dano moral. A quitação do preço e a liberação da alienação fiduciária integravam a obrigação contratual da ré. Ou seja, como fornecedora, cabia à construtora planejar os atos finais do negócio jurídico e que se ligavam à declaração da quitação. Em razão da insuficiente atuação da ré (vício), a regularização da transferência da propriedade foi atrasada em mais de 45 dias. Houve falha manifesta. Primeiro, porque era previsível que o 16º Cartório de Registro de Imóveis exigiria a demonstração de que a pessoa que outorgou a quitação (fls. 26) possuía poderes para tanto, a partir do contrato social da sociedade. Inadmissível que a ré não fizesse a declaração já acompanhada de cópia autenticada do contrato social. Ou mesmo que mantivesse contato permanente com o 16º Cartório de Registro de Imóveis de modo a informar àquela unidade de delegação todas as alterações em seu contrato social e na sua presentação. E segundo, porque cabia a ela formular um recibo de quitação completo. Não bastava indicar ao consumidor por e-mail que uma cláusula do contrato por escritura pública tornava suficiente o primeiro recibo de quitação. É cediço que a segurança jurídica configurava um princípio dos registros públicos. Daí porque pertinente a exigência do 16º Cartório de Registro de Imóveis. Havia necessidade de uma liberação expressa da alienação fiduciária para se dissipar qualquer insegurança jurídica. Cabia à ré, novamente, antecipar-se a tais problemas e informar ao 16º Cartório de Registro de Imóveis que suas declarações de quitação serviriam para a liberação das alienações fiduciárias que recaíam sobre os apartamentos. Ou então, bastava à ré ser completa na declaração de quitação, adicionando-se à redação a explícita liberação da garantia fiduciária. Em suma, os atrasos para a regularização da transferência do imóvel caracterizaram um vício na venda do produto, uma ineficiência manifesta da ré. Deveria haver preocupação com uma quitação completa e capaz de gerar o imediato cancelamento da alienação fiduciária. Deveria haver uma comunicação mais efetiva entre a construtora e o 16º Cartório de Registro de Imóveis, evitando-se as devoluções dos documentos para ingresso naquela unidade de delegação. Os fatos acarretaram dissabores, transtornos e aborrecimentos ao autor diante de um atraso de mais de 45 na transferência da propriedade de um imóvel - e até porque já prometido a venda para terceiros. Oportuno o magistério de José de Aguiar Dias sobre o dano moral (in "Da Responsabilidade Civil", Forense, Tomo II, 4a. ed., 1960, pág. 775): "Ora, o dano moral é o efeito não patrimonial da lesão do direito e não a própria lesão, abstratamente considerada. O conceito de dano é único, e corresponde a lesão de direito. Os efeitos da injúria podem ser patrimoniais ou não, e acarretam, assim, a divisão dos danos em patrimoniais e não patrimoniais. Os efeitos não patrimoniais da injúria constituem os danos não materiais." No mesmo sentindo, sobressai a lição do professor Carlos Alberto Bittar (in "Reparação Civil por Danos Morais", RT, 1993, págs. 41 e 202) sobre a extensão jurídica dos danos morais: "Qualificam-se como morais os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração social). "... "Na concepção moderna da teoria da reparação de danos morais prevalece, de início, a orientação de que a responsabilidade do agente se opera por força do simples fato da violação. Com isso, verificado o evento danoso, surge, ipso facto, a necessidade da reparação, uma vez presentes os pressupostos de direito. Dessa ponderação, emergem duas conseqüências práticas de extraordinária repercussão em favor do lesado: uma, é a dispensa de análise da subjetividade do agente; outra, a desnecessidade de prova do prejuízo em concreto." (negrito nosso). As lições dos ilustres juristas servem de ponderação no caso presente. Em alguns acontecimentos, provado o fato danoso, surge como conclusão inafastável e independente de outras provas a obrigação de reparação dos danos morais. É o que ocorre, por exemplo, com a perda de um ente querido. Do mesmo modo, entendo que se pode concluir que, uma vez provada a violação de direitos do consumidor, surgirá em seu benefício, ipso facto, o reconhecimento da indenização dos danos morais independente da análise subjetiva do sentimento do ofendido ou da produção de outras provas. Ademais, numa sociedade de massa em que se privilegia o consumo e o crédito ao consumidor, torna-se fato notório a importância dada à existência de eventos danosos aos consumidor. Preocupa-me a tese esposada por alguns intérpretes do Direito, diferenciando o dano moral dos transtornos causados pelo cotidiano, que não seriam indenizáveis. A Constituição Federal concebeu a indenização dos danos morais sem qualquer restrição, não cabendo ao Estado (legislador ordinário ou juiz) diminuir o alcance de tão importante direito fundamental. Por isso, como regra ampla e geral, onde existir o desconforto, o transtorno, o incômodo, etc. haverá lugar para a indenização por dano moral. Logicamente, como exceção, os abusos (a patologia) deverão ser extirpados e combatidos, sem preconceitos e sem a preocupação com uma "indústria do dano moral", pensamento, "data venia", sem qualquer fundamento jurídico. Sobre esta parte, colhe-se a magnífica manifestação do Min. FRANCISCO REZEK (participando do julgamento do recurso extraordinário já citado, RT 740/205), que vê na tímida atuação do foro cível - ao lado do foro criminal - uma das causas da sensação de impunidade do país: "Volto agora ao que nos interessa: receio que seja também ideológica a leniência do foro cível - que responde, tanto quanto o foro criminal, pela imagem do "país da impunidade" - no domínio das relações do cidadão, visto na sua qualidade de consumidor, com todas as forças estabelecidas no plano econômico: o comerciante, o industrial, o prestador de serviços, o banqueiro, o próprio Estado-empresário. A tendência do Poder Público diante dos reclamos do consumidor sempre foi - neste país mais do que nos outros - a de reagir com surpresa. O que é isso ? Que história é esta ? Não é caso de indenização; não é caso da pessoa sentir-se tão lesada; não é caso de pedir em juízo reparação alguma. Parece-me que essa forma de leniência no foro cível deveria finalmente, à luz da CF/88, encontrar seu paradeiro, produzindo uma situação nova, condizente com os termos da Carta." (negrito nosso). Na verdade, o que se depreende dos autos é a falta de controle da ré sobre o procedimento de cumprimento da obrigação contratual. Um completo e absurdo descaso! A função da indenização oriunda do dano moral tem dividido as opiniões dos autores. Clayton Reis (in "Dano Moral", Forense, 2a. ed., 1.992, págs. 78/82) afirma que "todos os doutrinadores são uniformes em defender a tese de que a função da reparação de danos morais é meramente compensatória", porém também diz que "a compensação da vítima tem um sentido punitivo para o lesionador, que encara a pena pecuniária como uma diminuição do seu patrimônio material em decorrência do seu ato lesivo". Augusto Zenun (in "Dano Moral", Forense, 6a. ed., 1.997., págs. 109/139) reserva à reparação dos danos morais a finalidade compensatória pelos "derivativos", sugerindo "o arbitramento de derivativos suficientes e capazes de minorar a dor, ou por melhor explicar, as seqüelas que a dor moral causa (sentimentos, depressão, desvios da normalidade de vida, alheiamento parcial ou total)". Pela tese do mencionada autora, os derivativos serviriam para compensar e consolar o ofendido. O professor Caio Mário da Silva Pereira (in "Responsabilidade Civil", Forense, 3a. ed., 1.992, págs. 56/62) mostra-se amplamente favorável à indenização por dano moral, sublinhando que "a par do caráter punitivo imposto ao agente, tem de assumir sentido compensatório". Na jurisprudência, colhe-se o brilhante voto do Desembargador Walter Moraes (RT 650/63) que destaca a finalidade compensatória da reparação do dano moral, negando sua função punitiva mas admitindo que deva ter o condão de inibir o ofensor: "O dano moral não se avalia mediante cálculo matemático-econômico das repercussões patrimoniais negativas da violação - como se tem feito às vezes - porque tal cálculo já seria a busca exatamente do minus ou do detrimento patrimonial, ainda que aproximativa estimação. E tudo isso já esta previsto na esfera obrigacional da indenização por dano propriamente dito (CC, art. 1553). A reparação pecuniáriapelo dano moral, descartada já a impossibilidade da eqüiponderância de valores, tem outro sentido, como anota Windscheid acatando opinião de Wichter: compensar a sensação de dor da vítima com uma sensação agradável em contrário (nota 31 ao parágrafo 455 das Pandette, trad. Fadda e Bensa). Assim, tal paga em dinheiro deve representar para a vítima uma satisfação, igualmente moral, ou, que seja, psicológica, capaz de neutralizar ou anestesiar em alguma parte o sofrimento impingido; como diz Roberto Brebbia (El Daño Moral, p. 28), "uma soma de dinheiro ao danificado para que este possa proporcionar-se uma satisfação equivalente ao desassossego sofrido", pois "o dano moral (diz noutro ponto) compreende a estimação dos padecimentos, o temor das conseqüências definitivas ou transitórias do dano emergente" (p. 154). A eficáciada contrapartida pecuniárianão esta na aptidão para proporcionar a satisfação em justa medida, de modo que tão pouco signifique um enriquecimento sem causa da vítima, mas esta em produzir no causador do mal, impacto bastante para dissuadi-lo de igual ou novo atentado. Trata-se, então, de uma estimação prudência, que não dispensa sensibilidade para as coisas da dor e da alegria, para os estados d'alma humana, e que deve ser feita pelo mesmo juiz ou, quando muito, por outro jurista; inútil sempre por em ação a calculadora do economista ou do técnico em contas. É nesse sentido que o citado Brebbia, na sua excelente monografia sobre o dano moral, assinala alguns elementos que se devem levar em conta na fixação do reparo: a gravidade objetiva do dano, a personalidade da vítima (situação familiar e social, reputação), a gravidade da falta (conquanto não se trate de pena, a culpa da ação implica na gravidade da lesão), a personalidade (as condições) da autora do ilícito (p. 119)". (negrito nosso). Concluindo, também entendo que a finalidade principal da reparação centra-se na compensação destinada à vítima, como forma de aliviar (se não for possível eliminar) a lesão experimentada. Todavia, em determinados casos, também a função inibitória (uma idéia aproximada à da sanção civil) assume relevante papel, a fim de que o ofensor seja punido de tal forma a não praticar atos similares. Nas ofensas cometidas contra os consumidores, a função inibitória assume destacada importância, sendo imprescindível que a indenização possa persuadir - desestimular - o fornecedor (ofensor); afinal, para grandes empresas uma condenação em valores ínfimos poderá representar um risco assumido na adoção de posturas ilegais contra os consumidores (todos sabem que nem todos os ofendidos ingressam em Juízo na defesa dos seus direitos e interesses). Na hipótese sob exame, revelando-se significativa ambas as funções compensatória e inibitória, entendo que a indenização do dano moral deve ser fixado em R$ 7.000,00 (sete mil reais). O valor será acrescido de juros de mora de 1% ao mês (capitalizados anualmente, a partir da citação) e de correção monetária (calculada pelos índices adotados pelo TJSP, a partir da presente data). A repercussão do dano foi levada em conta, na medida em que se situou dentro de padrões não estrondosos. A função compensatória estará bem atendida, porque o autor disporá de quantia suficiente a neutralizar os negativos efeitos do constrangimento experimentado. A ré terá mais atenção com os consumidores e poderá facilitar a solução dos litígios em Juízo, trazendo propostas de acordo e, quem sabe, até procurando a parte contrária para uma breve composição. Diante de um equívoco manifesto do fornecedor, sua postura em relação às lides forenses deveria ser outra! DISPOSITIVO. Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE a ação de cobrança promovida por H. O. em face de Plano & Plano Construções e Empreendimentos Ltda, para condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 7.000,00 (sete mil reais). O valor será acrescido de juros de mora de 1% ao mês (capitalizados anualmente, a partir da citação) e de correção monetária (calculada pelos índices adotados pelo TJSP, a partir da presente data). Considerando-se a sucumbência, condeno a ré ao pagamento da taxa judiciária e dos honorários advocatícios, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor integral do débito (principal com juros e correção) para esta fase de conhecimento. Se não houver cumprimento voluntário da sentença, desde logo elevo os honorários advocatícios de 15% (quinze por cento) para abranger também a fase de execução (numa única incidência). Fica a parte ré intimada a cumprir a obrigação de pagamento, no prazo de 15 (quinze) dias, contados da data em que a condenação se tornar exigível, em primeiro ou segundo grau, independente de outras intimações, sob pena de incidência da multa processual de 10% (dez por cento), na forma do artigo 475-J do Código de Processo Civil. Base de cálculo da taxa judiciária incidente na fase recursal: R$ 7.000,00 - sem acréscimos. São Paulo,20 de março de 2011. (TJ/SP - proc 0055532-07.2010.8.26.0002).